6.12.08

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   Ser: poeta

Necessito traduzir o ser
acumulado de segredos e memórias,
que, sedento, procura o idioma
do assombro, do enlevo e da náusea.

Preciso revelar o ser
que há muito enfrentou o espelho:
parceiro de incertezas,
testemunha de entregas.

Reclamo a expressão do ser
que não é grafite, carvão ou giz,
nem tinta, paleta e pincel,
nem mármore, cinzel e buril.
Não é desenhos do corpo no ar,
nem máscara de riso e de choro,
não é figuras animadas no vinil,
nem captura da linha do horizonte.
Não é som, agudo ou grave,
nem contralto, nem soprano,
não é clave, batuta e notas,
nem cordas, baquetas e sopros.

É urgente dar voz ao ser
que é apenas inquietude e palavras.


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Substantivo
qual garimpeiro que se isola
à cata de gemas e metais

esmeralda, rubi, jade
diamante, ametista
turmalina multicor
ouro, prata e platina
me embrenho
em depósitos de eluvião,
em álveos de cursos d’água
em cavidades, depressões
em vertentes e declives
em chapadas, grupiaras
em veios de rochas ígneas

busco a palavra exata

capaz de preceder
a emoção primeira
a impressão primeira
a sensação primeira
e o primevo pensamento
a palavra substantiva

turmalina multicor egípcia
que, do subterrâneo, acende a luz do Sol

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Concretude

Em minha poesia não cabem
arbustos moldados por anjos,
asas de éter febril
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centauros translúcidos,
quimeras embriagadas,
nuvem de sopros nus.

Quero, antes, a concretude da matéria:

o bronze, o jade, o marfim,
o ébano, o jacarandá,
o granito,

o mármore
duro e frio
que nas mãos de Michelângelo
se torna Pietá.

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Cambiante

Não quero compor canções de amor ou de amigo,
nem cantigas de escárnio e de maldizer.

Tampouco me interessam sonetos e hinos,
odes, baladas, elegias e madrigais.

Não desejo criar tramas imaginárias,
discorrer sobre a memória ou a poética de Flaubert.

Hoje, quero apenas me sentar na calçada,
e contemplar:

as tempestades de areia no Deserto do Saara
e a onda devastadora na foz do Araguari;

as fendas nas paredes do cânion do Colorado
e o choque do mar contra as falésias de Corfu;

o jorro ardente do gêiser de El Tatío
e a incandescência do Mauna Loa no Haiti;

o deslocamento rouco das geleiras da Patagônia
e o estrondo das águas nas cataratas do Iguaçu;

o oceano serpenteando os fiordes da Noruega
e a ondulação azul do Lago Malawi;

a dança instável das dunas da Namíbia
e o vulto imóvel do Fuji na Ilha de Honshu;

a água aflorando na nascente do Amazonas
e o divino encontro do São Francisco com o mar.

Fecharei os olhos,
silenciarei os pensamentos,
observarei o longo e lento embate
— imposição, resistência e entrega —,

os mil semblantes do meu mundo
disputando um mesmo espaço.
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Self
Liberta de enredos
e ruídos

deslizei
na longa
cova
em espiral
da mina
de diamantes.

Descobri o carbono puro
envolto em lama,
lavei, clivei, poli,
realcei o foco,
liberei os reflexos.

Só, então, admirei os brilhantes:

um deles, reconheço, sou eu,
e é minha aquela luz
lançada da estrela distante.
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Mater dolorosa

Estendido, pálido, no caixão barato,
segue em frente, cercado de cravos,
o menino que brincando distraído
interrompeu o traçado de uma bala.

O cortejo fúnebre atravessa o bairro
ostentando a dor da mulher anônima,
que conduz febril aquele corpo leve
com o peso da revolta sobre os ombros.

Nunca mais cantigas de ninar,
nunca mais os gritos de alegria,
nunca mais presentes,
nunca mais castigos,
nunca mais o riso.
Durma, filho, durma tranqüilo,
É tarde, acabou a brincadeira.
Seus amigos voltaram para casa
e no colo das mães já têm abrigo.

Vai, meu pequeno, não sinta medo
mesmo que se apague a luz do dia.
Se aconchegue no berço do infinito,
entregue ao nada sua pouca vida.

Qual Deméter, mãe desesperada,
maldizendo a terra que ocultou Perséfone,
brada a mulher contra a vida ingrata
que não lhe traria a cor na primavera.

Maldita a cidade de ruas incertas
e de praças à mercê de bandidos
que sem dó enterra a minha alma
com esse homem nunca crescido!

Maldito o ventre que deu à cidade
esse fruto para sempre imaturo!
Por que o gerou quando não podia
sequer lhe dar um lugar seguro?


Não há caminho de volta,
não há fuga, nem refúgio,
só noite e noite,
sol negro, estrelas mortas
e sombras.

Pobre mãe subtraída de seu filho
a expor o calvário de um povo,
coração dilacerado por espadas
forjadas no descaso, no abandono!


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Ouça a música cujo clima me inspirou este poema:
Strange Fruit, de Lewis Allen (Abel Meeropol),

na interpretação de Nina Simone.
Clique aqui: Strange Fruit.
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Clima igualmente inspirador encontrei depois em
Dido's Lament, ato III da ópera Dido and Aeneas,
de Henry Purcell.
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Ou clique na barra de vídeo à direita.
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Pousados no fio elétrico pardais em cadeia monótona parecem dias
iguais ou colar de contas opacas. No meio o canário intruso em sua
plumagem dourada brilha sem que ele note que se veste de feriado.
O poeta quando os vê ama os pardos e o amarelo:
os versos que se irmanam, o verso que se destaca.
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Constatação

O orvalho que cintila nas pétalas
se deposita sobre ramos podres.

O solo dá sustento aos templos
e acolhe os muros dos cárceres.

As águas que banham os lordes
apagam os vestígios da carruagem.

A mesma luz que afugenta o medo
facilita a ação dos falsários.

A seiva alimenta os pomares
e nutre as ervas daninhas.

A fagulha que incandesce a lenha
transforma o arvoredo em nada.

Intriga-me a conduta da natureza
que se doa, muda,
a nobres e vulgares.

Terei que adotar igual isenção
ao me entregar
à substância dos meus versos?
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Desnuda

Ontem, entrei no mar.
Meu corpo se encontrou
com seu corpo azul sonoro.

Inebriada pelo perfume ondulante,
ouvi a doce cantiga do mar de Caymmi
e os ais atlânticos de Fernando Pessoa.

Como Alfonsina, me vesti de mar,
manto dos mistérios recolhidos pelos rios.

Em suas águas ancestrais,
diluí meus medos, meus erros,
entreguei minha incompletude.
Em troca, implorei que seu canto rouco
me sussurrasse mil novos poemas.


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Ouça a canção Alfonsina y el mar, de Ariel Ramirez
e Félix Luna (uma referência à morte da poetisa Alfonsina
Storni no mar ), na interpretação de Mercedes Sosa.
Clique aqui: Alfonsina y el mar
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Ou clique na barra de vídeo à direita.
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Ventania, vendaval

Se o vento sopra suave
acaricia a face
remexe os cabelos
acorda as acácias
encrespa a areia
espanta o calor.

Se acentua o sopro
levanta as saias
badala os sinos
acorda os pássaros
desalinha as folhas
espalha as sementes
excita o mar.

Mas se o vento se enfurece
desprende as telhas
desfaz as cercas
inclina as torres
transborda os barcos
inunda os rios
desfigura a paisagem
instala o pavor.

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Musa exigente

A Poesia

rejeita minhas mágoas
e despreza meus sonhos.
Ignora o relato de encontros,
fascínios e desenlaces,
e esquece a cadeia das horas
que desbotam, se monótonas.

Talvez queira que as memórias
se apaguem qual rio seco,
ou quem sabe reavivá-las
em pedras, maçãs e teias.

Não quer as queixas, mas a dor.
Não quer as certezas, mas o assombro.
Não quer a timidez, mas a ousadia.
Não quer a anemia, mas a fúria.

A Poesia quer é meu sangue,
e sangue pagão.
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Radical

Arrancaram a velha árvore da minha cidade.

Cruéis,
não se limitaram a modelar a copa:
deceparam os galhos,
cerraram o tronco,
extraíram as raízes.

Implacáveis,
revolveram todo o solo
até extinguir as radículas
e a memória da semente.

Pois a árvore,
nutriz por natureza,
gerou um fruto, um único,
injetado de veneno.
Condenou-se e, ao condenar-se,
sentenciou a terra em torno.

Revoluto, acidentado,
tornou o solo os passos desarmônicos
Aceitou, porém, a sina
de paisagem inconclusa
ao lembrar que, dentro dele,
pulsava, inatingível, a energia vital.


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